quinta-feira, setembro 22, 2005

DE PORTAS ABERTAS

Recentemente um colega austríaco convidou-me para contribuir com um texto para uma colectânea sobre a ascensão da extrema-direita na Europa. O projecto consiste em comparar os vários casos nacionais, do ponto de vista da antropologia, analisando os discursos, as retóricas, as performances e as simbologias dos extremismos e dos seus líderes. Convidou-me à última da hora, pois tinha sabido da ascensão do CDS-PP ao governo português.

A minha reacção inicial foi de hesitação. Por muito que me apetecesse apelidar Paulo Portas e o PP de “extrema direita”, tinha dúvidas quanto à qualificação. Não é o PP o herdeiro directo de um partido que existe desde o 25 de Abril com representação parlamentar? Não é o PP o herdeiro directo de um político como Freitas do Amaral, um homem com, reconheçamos, “sentido de Estado”? E não é o PP simplesmente parceiro de coligação do PSD, uma espécie de pedra no bolso que Durão Barroso tem que aguentar para garantir a maioria? Finalmente: pode dizer-se sem problemas que Paulo Portas – ex-director de um semanário, filho de pessoas cultas e democraticamente engajadas, irmão não desavindo de um dirigente do Bloco de Esquerda – é um típico facínora de extrema-direita?

A resposta ingénua e imediata seria “não”. Mas uma análise mínima do fenómeno da nova extrema direita na Europa acaba por nos revelar muitos Paulos Portas. E o comportamento deste nas últimas semanas mostra quão parecido ele é com os seus equivalentes europeus.

Esta nova extrema direita europeia caracteriza-se por ter líderes com um novo tipo de protagonismo. Eles não se apresentam como facínoras fascistas (excepto Le Pen, mas ele está – talvez por isso mesmo - a ser ultrapassado pelo seu rival Mégret); eles não recorrem à imagética militar, uniformizada e grandiosa; sobretudo, eles não partilham (com a extrema esquerda...) a utopia de uma sociedade que transcenda o capitalismo e não fazem do capitalista um dos seus alvos.

Os líderes que personificam esta nova extrema direita não questionam a ordem social e económica vigente: eles apresentam-se mesmo como homens de sucesso, como yuppies, muitas vezes bem sucedidos no universo dos mass media. A sua imagem é de contemporaneidade e modernidade mediatizadas: Berlusconi é um magnata dos media, Haider veste fatos Armani e pratica desportos radicais; Fortuyn era mesmo um assumido gay cosmopolita.

Esta extrema direita aponta os seus canhões para um alvo duplo. Por um lado, pretende transmitir a ideia de que as coisas não funcionam bem porque o Estado é demasiado forte e inoperante, associando Estado a esquerda. Por outro lado, tem um projecto nacionalista, que passa pelo anti-europeísmo e por atitudes xenófobas e anti-imigração. Esta é uma mistura nova: enquanto o segundo elemento apresenta continuidades com o nacionalismo racista da extrema direita antiga, o primeiro elemento significa que esta extrema direita não só aceita como quer mais desordem neo-liberal (o nazi-fascismo era profundamente estatista como, aliás, o salazarismo). Por isso se pode dizer que a nova extrema direita é uma forma original de promover os efeitos perversos da globalização neo-liberal, mascarando-os com uma velha retórica nacionalista e isolacionista que tão bem aceite é no espírito retrógrado das massas.

Caricaturando: hoje não temos um Hitler ou um Mussolini, de origens humildes, vestidos à militar, lançando impropérios contra os capitalistas e as oligarquias, propondo um estado totalitário e militarizado, com um racismo marcado pela variante anti-semita. Hoje temos uns jovens enérgicos, bem sucedidos no capitalismo soft da comunicação e dos “conteúdos”, habilidosos no aproveitamento dos media. Querem que a intervenção do estado seja abolida; promovem a globalização neo-liberal na política, no social e na economia, ao defenderem a alienação de bens e serviços públicos, bem como a desregulamentação do trabalho. E fazem-no enquanto fingem fazer o contrário, defendendo o fechamento das fronteiras aos imigrantes – o que não significa o fechamento das fronteiras aos capitais...

Seguindo a velha distinção entre esperteza e inteligência, pode-se dizer que a nova extrema direita é espertalhaça. Continua a fazer o papel de testa de ferro dos sectores conservadores em geral, que não se atrevem a radicalizar o discurso. Em tempos o nazi-fascismo serviu como forma de as classes dirigentes garantirem o poder, face à ofensiva do sindicalismo e da esquerda da época. Hoje, a nova extrema-direita capitaliza os descontentamentos com alguns efeitos da globalização, deixando prosseguir incólume aquilo que realmente interessa: a impossibilidade crescente de a economia e a justiça social serem reguladas pelas populações.

E em Portugal? Sabemos que este país teve um percurso original. O totalitarismo de direita continuou depois da segunda guerra e até aos anos setenta. Foi centrado num salazarismo que promovia o fechamento do país através de uma fantasia de auto-suficiência nivelada por baixo, pela pobreza. Uma utopia ruralista, católica, de promoção da ignorância e do analfabetismo. Nada de grandes transformações nem de política inspirada, ao contrário do fascismo no sentido estrito.

Esta é a herança de extrema direita em Portugal. Por isso, quando olhamos para Portas, vemos que ele tem que jogar um jogo duplo: tem que apelar às camadas que se identificam com o modelo salazarista – os velhos e reformados, sobretudo pobres, os “espoliados do ultramar”, os rurais. Fá-lo ora como Paulinho das Feiras (a vertente popularucha) ora como senhor de fato às riscas e gravata (para parecer mais velho e conservador). Como tem que apelar, também, ao universo urbano de onde emergiu, tem ainda que dar sinais – na linguagem, no sotaque, na corporalidade – de pertença a uma classe que se vê a si mesma como “superior”. Seminarista assexuado, cacique rural latifundiário, condutor de jipe ou Jaguar, yuppie da TV e imprensa: é obra, mas tudo se mistura quando os tempos a tanto obrigam.

Se analisarmos o discurso de Portas, ele apresenta-se como anti-sistema: o estado é gordo e podre e grande demais; a Europa não interessa porque é mais um estado sobre o estado. Neste sentido, ei-lo a defender o neo-liberalismo. Por outro lado, para ele a Nação precede o indivíduo, o cidadão, e sobrepõe-se às classes sociais; o nacionalismo deve ser promovido, a religião e a família tradicional idem, e a imigração contida. Nunca a direita se portou tão bem face aos seus desígnios: continuar a agenda chauvinista e racista, ao mesmo tempo que, nos negócios, se pode afastar de vez a chatice do estado e do bem estar social e da justiça. Isso não espanta em Portugal: afinal Portas percebeu que este país é governado por uma estranha aliança entre a teoria económica do grande capital, a teoria moral da igreja e a teoria política de empreiteiros, caciques locais e futeboleiros.

Isto torna-se tudo aflitivamente claro quando surge o caso Moderna. A ser verdade o que se suspeita, trata-se da demonstração de que as ideias de rectidão e probidade são demagogia, e que o sistema de acumulação funciona por vias travessas. É mesmo de ultraliberalismo que se trata e o bem público e o estado que se danem (pois há um valor muito mais alto e perene, que é a “Raça”, perdão, a “Nação”). E torna-se ainda mais claro quando se vê a estratégia do líder: transferir o debate do parlamento para a TV, ainda por cima para a populista TVI; e convocar uma manifestação de apoio, habilmente transformada em acto de apoio ao governo, atando assim de pés e mãos o PSD. Os líderes de extrema-direita sempre fizeram isto: abusar da liberdade que lhes é dada pela direita “civilizada”, que assim se vê na situação de ter criado um monstro.

As figuras da extrema direita em Portugal representam alguns dos piores tipos sociais nacionais: homens cheios de sentimentos de honra pública, ciosos de uma privacidade que permita fazer tudo (até nos negócios...) o que os seus supostos valores condenam. Querem dar ares de aristocracia desprendida, quando na realidade é o lucro do empreendimento burguês e capitalista que os move; querem dar ares de salazarismo comedido, de cristandade (“democracia cristã”, é a expressão que adoram), para na vida privada usufruirem das liberdades que procuram negar aos cidadãos. Querem dar ares de comedimento e sofisticação, quando na realidade recorrem à demagogia populista em prime time televisivo.

À herança do atraso salazarista juntou-se a alienação televisiva e consumista dos últimos anos. Pelo caminho não se apostou no conhecimento e na cidadania. Abriram-se, assim, as portas a uma extrema-direita subtil, unha com carne com os piores atavismos e sofreguidões da nossa sociedade. Afinal, o meu colega austríaco tinha razão. Pudera: saber de experiência feito...

21 Setembro 2002

Miguel Vale de Almeida

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