quinta-feira, julho 26, 2007

Contra o medo, liberdade

In Público de 24.07.2007
A crítica é olhada com suspeita, o seguidismo transformado em virtude
Contra o medo, liberdade
24.07.2007 - 23h15 , Manuel Alegre

Nasci e cresci num Portugal onde vigorava o medo. Contra eles lutei a vida inteira. Não posso ficar calado perante alguns casos ultimamente vindos apúblico. Casos pontuais, dir-se-á.Mas que têm em comum a delação e a confusão entre lealdade e subserviência.Casos pontuais que, entretanto, começam a repetir-se. Não por acaso ou coincidência. Mas porque há um clima propício a comportamentos com raízesprofundas na nossa história, desde os esbirros do Santo Ofício até aos bufosda PIDE. Casos pontuais em si mesmos inquietantes. E em que é tão condenável a denúncia como a conivência perante ela.Não vivemos em ditadura, nem sequer é legítimo falar de deriva autoritária.As instituições democráticas funcionam. Então porquê a sensação de que nemsempre convém dizer o que se pensa? Porquê o medo? De quem e de quê? Talvez os fantasmas estejam na própria sociedade e sejam fruto da inexistência deuma cultura de liberdade individual.Sottomayor Cardia escreveu, ainda estudante, que "só é livre o homem queliberta". Quem se cala perante a delação e o abuso está a inculcar o medo. Está a mutilar a sua liberdade e a ameaçar a liberdade dos outros. Ora issoé o que nunca pode acontecer em democracia. E muito menos num partido como oPS, que sempre foi um partido de homens e mulheres livres, "o partido sem medo", como era designado em 1975. Um partido que nasceu na luta contra aditadura e que, depois do 25 de Abril, não permitiu que os perseguidos setransformassem em perseguidores, mostrando ao mundo que era possível passar de uma ditadura para a democracia sem cair noutra ditadura de sinalcontrário.Na campanha do penúltimo congresso socialista, em 2004, eu disse que haviamedo. Medo de falar e de tomar livremente posição. Um medo resultante da dependência e de uma forma de vida partidária reduzida a seguir osvencedores (nacionais ou locais) para assim conquistar ou não perderposições (ou empregos). Medo de pensar pela própria cabeça, medo dediscordar, medo de não ser completamente alinhado. No PS sempre houve sensibilidades, contestatários, críticos, pessoas que não tinham medo dedizer o que pensam e de ser contra quando entendiam que deviam ser contra.Aliás, os debates desse congresso, entre Sócrates, eu próprio e João Soares, projectaram o PS para fora de si mesmo e contribuíram em parte para avitória alcançada nas legislativas. Mas parece que foram o canto do cisne.Ora o PS não pode auto-amordaçar-se, porque isso seria o mesmo que estrangular a sua própria alma.Há, é claro, o álibi do Governo e da necessidade de reduzir o défice pararespeitar os compromissos assumidos com Bruxelas. O Governo é condicionado aaplicar medidas decorrentes de uma Constituição económica europeia não escrita, que obriga os governos a atacar o seu próprio modelo social,reduzindo os serviços públicos, sobrecarregando os trabalhadores e asclasses médias, que são pilares da democracia, impondo a desregulação e a flexigurança e agravando o desemprego, a precariedade e as desigualdades.Não necessariamente por maldade do Governo. Mas porque a isso obriga o Pactode Estabilidade e Crescimento (PEC) conjugado com as Grandes Orientações de Política Económica. Sugeri, em tempos, que se deveria aproveitar apresidência da União Europeia para lançar o debate sobre a necessidade derever o PEC. O Presidente Sarkozy tomou a iniciativa de o fazer. Gostei de ouvir Sócrates a manifestar-se contra o pensamento único. Mas é este quecondiciona e espartilha em grande parte a acção do seu Governo.Não vou demorar-me sobre a progressiva destruição do Serviço Nacional de Saúde, com, entre outras coisas, as taxas moderadoras sobre cirurgias einternamentos. Nem sobre o encerramento de serviços que agrava adesertificação do interior e a qualidade de vida das pessoas. Nem sobre aproposta de lei relativa ao regime do vínculo da Administração Pública, quereduz as funções do Estado à segurança, à autoridade e às relaçõesinternacionais, incluindo missões militares, secundarizando a dimensãoadministrativa dos direitos sociais. Nem sobre controversas alterações aoestatuto dos jornalistas em que têm sido especialmente contestadas acrescente desprotecção das fontes, com o que tal representa de risco para a liberdade de imprensa, assim como a intromissão indevida de personalidades eentidades na respectiva esfera deontológica. Nem sobre o cruzamento de dadosrelativos aos funcionários públicos, precedente grave que pode estender-se a outros sectores da sociedade. Nem ainda sobre a tendência privatizadora que,ao contrário do Tratado de Roma, onde se prevê a coexistência entre opúblico, o privado e o social, está a atingir todos os sectoresestratégicos, incluindo a Rede Eléctrica Nacional, as Águas de Portugal e opróprio ensino superior, cujo novo regime jurídico, apesar das alteraçõesintroduzidas no Parlamento, suscita muitas dúvidas, nomeadamente no que respeita ao princípio da autonomia universitária.Todas estas questões, como muitas outras, são susceptíveis de ser discutidase abordadas de diferentes pontos de vista. Não pretendo ser detentor daverdade. Mas penso que falta uma estratégia que dê um sentido de futuro e de esperança a medidas, algumas das quais tão polémicas, que estão a afectartanta gente ao mesmo tempo. Há também o álibi da presidência da UniãoEuropeia. Até agora, concordo com a acção do Governo. A cimeira com o Brasil e a eventual realização da cimeira com África vieram demonstrar quePortugal, pela História e pela língua, pode ter um papel muito superior aodo seu peso demográfico. Os países não se medem aos palmos. E ao contrário do que alguém disse, devemos orgulhar-nos de que venha a ser Portugal, emvez da Alemanha, a concluir o futuro Tratado europeu. Parafraseando umbiógrafo de Churchill, a presidência portuguesa, na cimeira com o Brasil, recrutou a língua portuguesa para a frente da acção política. Merece o nossoaplauso.Oque não merece palmas é um certo estilo parecido com o que o PS criticounoutras maiorias. Nem a capacidade de decisão erigida num fim em si mesma, quase como uma ideologia. A tradição governamentalista continua a imperar emPortugal. Quando um partido vai para o Governo, este passa a mandar nopartido, que, pouco a pouco, deixa de ter e manifestar opiniões próprias. A crítica é olhada com suspeita, o seguidismo transformado em virtude.Admito que a porta é estreita e que, nas circunstâncias actuais, asalternativas não são fáceis. Mas há uma questão em relação à qual o PS jamais poderá tergiversar: essa questão é a liberdade. E quem diz liberdadediz liberdades. Liberdade de informação, liberdade de expressão, liberdadede crítica, liberdade que, segundo um clássico, é sempre a liberdade de pensar de maneira diferente. Qualquer deriva nesta matéria seria para o PSum verdadeiro suicídio.António Sérgio, que é uma das fontes do socialismo português, prezava o seu"querido talvez" por oposição ao espírito dogmático. E Antero de Quental chamava-nos a atenção para estarmos sempre alerta em relação a nós próprios,porque "mesmo quando nos julgamos muito progressistas, trazemos dentro denós um fanático e um beato". Temo que actualmente pouco ou nada se saiba destas e doutras referências.Não se pode esquecer também a responsabilidade de um poder mediático queorienta a agenda política para o culto dos líderes, o estereótipo e oespectáculo, em detrimento do debate de ideias, da promoção do espírito crítico e da pedagogia democrática. Tenho por vezes a impressão de quecertos políticos e certos jornalistas vivem num país virtual, sem povo, semhistória nem memória.Não tenho qualquer questão pessoal com José Sócrates, de quem muitas vezes discordo mas em quem aprecio o gosto pela intervenção política. O que ponhoem causa é a redução da política à sua pessoa. Responsabilidade dele? Averdade é que não se perfilam, por enquanto, nenhumas alternativas à sua liderança. Nem dentro do PS nem, muito menos, no PSD. Ora isto não é bompara o próprio Sócrates, para o PS e para a democracia. Porque é emsituações destas que aparecem os que tendem a ser mais papistas que o Papa. E sobretudo os que se calam, os que de repente desatam a espiar-se uns aosoutros e os que por temor, veneração e respeitinho fomentam o seguidismo e omedo.Sei, por experiência própria, que não é fácil mudar um partido por dentro. Mas também sei que, assim como, em certos momentos, como fez o PS no verãoquente de 75, um partido pode mobilizar a opinião pública para combatesdecisivos, também pode suceder, em outras circunstâncias, como nas presidenciais de 2006 e, agora, em Lisboa, que os cidadãos, pela abstençãoou pelo voto, punam e corrijam os desvios e o afunilamento dos partidospolíticos. Há mais vida para além das lógicas de aparelho. Se os principais partidos não vão ao encontro da vida, pode muito bem acontecer que arecomposição do sistema se faça pelo voto dos cidadãos. Tanto no sentidopositivo como negativo, se tal ocorrer em torno de uma qualquer deriva populista. Há sempre esse risco. Os principais inimigos dos partidospolíticos são aqueles que, dentro deles, promovem o seu fechamento e impedema mudança e a abertura.Por isso, como em tempo de outros temores escreveu Mário Cesariny: "Entre nós e as palavras, o nosso dever falar." Agora e sempre contra o medo, pelaliberdade.